quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Recalcitrância anti-reformista

Contou-me um jornalista, duvidando que a reforma política seja feita, que um político paraibano de projeção nacional afirmou-lhe que (SIC): “a reforma política não sai porque não faremos algo que se voltará contra nós mesmos”. Constatarei, pois, o que a muito reluto em fazê-lo. A propalada e decantada reforma política não acontecerá a médio e longo prazo, posto que se feita de forma séria e republicana, considerando a necessidade de evoluirmos na qualidade de nosso sistema democrático, alterará a distribuição de poder hoje existente e aumentará o poder da população no sistema representativo. Os atores e partidos políticos não farão reformas que os levem a atuar republicanamente e a se submeterem as incertezas do jogo democrático.


Da forma como é tratada a reforma política me deixa abúlico. Numa exaustiva repetição os atores políticos vão discutindo a reforma para nos momentos definidores nada fazerem ou realizarem diminutas mudanças que alteram as regras do jogo eleitoral quando ele já está sendo jogado. Da forma recorrente como é (mal) tratada ela não gera dentro de seu próprio sistema modificações a partir dos efeitos gerados pelos impulsos que recebe, i.e., ela não se retroalimenta.


Em artigo, o Presidente da Câmara dos Deputados Michel Temer afirmou que: “Não é que não se queira fazer. É pelas dificuldades para realizá-la. Enquanto uns pedem urgência para os projetos de reforma, outros fazem obstrução para nada votar”. Temer revela que (1) usa-se o regimento da Câmara para não se fazer reformas e (2) o que se quer são mudanças pontuais para atender a interesses conjunturais. Não esqueçamos que os projetos de reformas, tramitando no legislativo, devem cumprir prazos para serem utilizados na eleição seguinte, i.e., para que mudanças feitas este ano valessem em 2010 teriam que ter sido promulgadas até setembro passado. Os deputados discutiram bastante e ao final saiu uma tosca tentativa de controlar o incontrolável – a divulgação de candidatos na internet. Reforma política relevante para 2010 não teremos. A ululante constatação de Temer me faz ímpio: “Discute-se a reforma desde 1998. Houvéssemos legislado entre 1998-2002, já poderíamos tê-la utilizado na eleição de 2006”.


A elite política não quer a reforma e, ao que parece, a sociedade também não, do contrário se mobilizaria como na campanha das Diretas-Já e no Impeachment de Collor. Afinal, que reforma desejamos e para que a queremos? Como ela será feita? Republicanamente, modificando a Constituição, ou via acordo palacianos. Reformas não devem ser feitas para atender a interesses comezinhos e filáucias de atores políticos. Devem ser um meio para se qualificar nossa democracia. A questão não se reduz a fazê-la ou não e sim a qualidade do processo que a implementará.


O menu da reforma política é complexo. Temos lista partidária fechada, com voto proporcional; voto distrital, misto ou puro; voto majoritário para eleger deputado; voto proporcional, com quociente eleitoral; financiamento público de campanha para partidos com lista fechada ou aberta. E o financiamento privado de campanhas, quem poderia fazê-lo – apenas pessoas jurídicas ou só as pessoas físicas? Ou tudo ficaria como está com ambas podendo contribuir? Permitir-se-ia financiamento público apenas para cargos majoritários? Que reforma acabaria o tal caixa dois dos partidos e coligações? Alguns itens são especulações casuísticas. Fala-se em fazer coincidir as eleições para todos os cargos do executivo e do legislativo e nos níveis federal, estadual e municipal. Defende-se o fim da reeleição, mas acrescentando um ano aos mandatos nos três níveis governamentais. E existem os que, teimosamente, defendem a re-reeleição presidencial e a proposta de que os suplentes de senadores sejam também eleitos pelo voto. Etc, etc, etc...


Os governos investem no desenvolvimento econômico, mas não se esforçam para que uma consequente reforma política seja efetivada. Não se movem em prol dela e abdicam da prerrogativa de propor projetos reformistas. Governantes turvam suas visões quando se trata de aprimorar mecanismos que podem tornar as instituições mais responsivas e dóceis aos mecanismos de accountability (a obrigação de se prestar contas aos órgãos controladores e/ou a sociedade) e ao sistema de freios e contrapesos, que existem em democracias onde o accountability é pleno. Este sistema trata da independência e harmonia entre os poderes, define suas obrigações e o que podem ou não fazer, além de regulá-los, limitá-los e impedir abusos. Quando uma lei é aprovada no legislativo, segue para a sanção do presidente que pode vetá-la se. Mas, se ele não o fizer, o Judiciário poderá decretar sua ilegalidade. Estes mecanismos serão habituais no Brasil se uma reforma político criar o lastro para que eles possam funcionar sem sobressaltos.


Claro está que a questão central da democracia é sua qualidade. Ela compreende aspectos de forma (procedimentos) e de conteúdo (substância) e reúne os mecanismos e práticas associados às formas de decidir em favor dos interesses sociais; além das normas que regem o bom funcionamento das instituições e as atitudes que marcam a relação entre elas e a sociedade civil. A qualidade da democracia avança quanto mais ela consegue aproximar e conciliar seus aspectos formais e substanciais. Pouco adiantará que a democracia seja de direitos se ela não for, também, de fato. A democracia tende a ser cada vez mais apoiada se ela funcionar bem para as pessoas comuns. Ela não pode ser desassociada do contexto socioeconômico em que as pessoas vivem.


É assim que a reforma política deve ser tratada – como um meio para que o sistema democrático brasileiro seja qualificado e não como um mero arranjo conjuntural para aumentar ou diminuir a fatia de poder de atores políticos. Se tratada de forma consequente e responsiva ela pode contribuir sobremaneira para que nossa frágil democracia se consolide.



Dezembro/2009.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Do que não me ufano.

Na Copa do Mundo de 1958 o técnico da Seleção Brasileira, Vicente Feola, fazia preleção para o jogo contra a União Soviética. Dizia que bastava fazer a bola chegar aos pés de Garrincha que este garantiria a vitória, quando Mané interveio: “Seu Feola, já combinou isso com os russos?”

Nossos governantes se esqueceram de combinar com os “russos” ao trazerem para o Brasil a Copa de Mundo (2014) e as Olimpíadas (2016). Ao abateram o helicóptero da polícia carioca, os traficantes estavam dizendo que faltou combinar também com eles. Claro que é inadmissível que as instituições fiquem a mercê de criminosos, mas o Rio é uma cidade conflagrada, com o crime organizado dominando áreas cada vez maiores.

Como eventos desse porte podem ocorrer em centros urbanos onde as instituições coercitivas são combatidas com armamento pesado? Pior, quando não demonstram condições de reverter a situação. A solução? Dar poder de polícia ao Exército, a Aeronáutica e a Marinha? Na verdade, quem deve ter poder de polícia é a própria polícia. Esperar que as Forças Armadas garantam a segurança pública é temerário, posto não serem talhadas para isso, mesmo tendo prerrogativas constitucionais, egressas da ditadura militar, e a Doutrina de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), utilizada cada vez mais em operações urbanas.

Devo me regozijar por que o Rio de Janeiro foi escolhido sede das Olimpíadas? Devo envaidecer-me, pois nem Barack Obama impediu que o Rio fosse eleito? Não, não vejo motivos para nos jactarmos. Os governantes devem se blasonar, pois Olimpíadas vitaminam projetos eleitorais. Como se impedirá que os traficantes atrapalhem a organização do evento caso entendam que este trará prejuízos aos “negócios”? Se eles podem derrubar um helicóptero blindado, o que não farão com todo o resto? Como tamanho evento acontecerá com uma polícia corrompida, cooptada e minada pelo crime organizado, com as tais balas perdidas e índices assustadores de criminalidade?

Definido o Rio como sede a polícia subiu o morro. Queria tomá-lo dos traficantes e lá ficar até as Olimpíadas? Instalaram as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) em alguns morros e, ato contínuo, os traficantes atacaram para garantir territórios. O governador do Rio afirmou que a segurança será reforçada próximo aos eventos. Mas, fossem os jogos na Dinamarca e a segurança seria, também, reforçada. O comando da PM disse que as UPPs aumentarão a segurança nas favelas, pois forçarão os traficantes a agirem longe das instalações olímpicas, i.e., a preocupação não é combater e acabar com o poder deles, mas estabelecer uma coexistência pacífica. O prefeito do Rio de Janeiro disse que Londres, após ser escolhida sede olímpica (em 2012), sofreu atentados terroristas mais graves do que os fatos no Rio. Apenas não disse que desde então lá não houve mais atentados. Já no Rio eles acontecem diariamente. Por isso mesmo, não posso me ufanar.

Enfim, o que se quer saber é como se retirará os traficantes de seus domínios, forçando-os a depor armas. O monopólio delas, pelo Estado, é requisito essencial para que a população possa sentir-se segura. A polícia tem que fazer o trabalho de inteligência e efetivar políticas de segurança visando o bem estar do cidadão, além de armar-se para poder fazer frente ao aparato bélico dos traficantes. Simples assim. Tudo o mais é verborragia político-eleitoral.

Também, não serão as promessas de medalhas em profusão que me farão esquecer os acontecimentos na organização do Pan-2007. O tal legado social do PAN não existiu (nunca existirá) e o que ficou foi déficit operacional, dívidas gigantescas e denúncias variadas de malversação do dinheiro público. Tendo desperdiçado as oportunidades trazida pelo PAN, aproveitaremos as duas próximas? Temo que não, pois não temos instituições republicanas. A Copa do Mundo é um negócio privado comando pelo inefável Ricardo Teixeira, através de sua possessão - CBF. As Olimpíadas terão Carlos Arthur Nuzman, posseiro único dos haveres, bens e cabedais do esporte olímpico brasileiro, como aquele que ditará todos os procedimentos.

Como sediaremos uma Copa do Mundo, se os projetos para a construção e reforma de aeroportos estão parados? Existem problemas financeiros e as empresas e os governos estaduais não demonstram como pagarão os empréstimos contraídos junto ao BNDES; inexiste controle institucional sobre o fornecimento de insumos para as obras; há desperdício de material e ameaças ao meio ambiente; e pululam pelos tribunais contestações aos processos de licitação de obras feitas.

Se nas férias o tráfego aéreo vira um caos, o que dirá num evento que deve trazer cerca de 500 mil pessoas ao país? O governo quer mudar o status da Infraero – de estatal passaria a sociedade anônima de capital fechado para que não se submetesse à fiscalização alguma, i.e., o governo quer transformar a questão estratégica dos aeroportos em um negócio livre de controle – quer desrepublicanizar a já frágil gestão aeroportuária no Brasil.

Estima-se que só a Copa do Mundo custará ao país algo entre 80 e 150 bilhões de reais. Como esses montantes serão auditados? As transferências de recursos públicos para a iniciativa privada, para que se construam estádios, serão críveis? Ou se farão na base de “para os amigos tudo, para os inimigos os rigores da lei”? Pergunto-me, pasmo, como se pode escolher o Brasil se não temos, hoje, um único estádio em condições de receber jogos em nível do evento.

Ufanar-me-ia se tivesse a certeza de que, com os eventos, teríamos obras que contribuiriam para que problemas crônicos (segurança, transporte, moradia, saneamento, poluição, etc) de nossas cidades fossem sanados. Vestiria uma camisa verde-amarela se visse que isso fortaleceria a capacidade competitiva do Brasil mundo afora. Colocaria uma bandeira em minha varanda se soubesse que esses eventos trariam um consistente legado para a qualidade de vida das pessoas. O ministro das Cidades, Márcio Fortes, afirmou que no dia seguinte à Copa cada empreendimento terá que ser um legado verdadeiro, funcionando sem déficits operacionais ou subsídios do governo. Certo! Concordo. Mas, como isso acontecerá? Sugiro primeiro passar o Pan-2007 a limpo e só depois pensar-se em legados futuros.

Assusta saber que centenas de atletas continuarão a míngua até 2016 e que um ou dois serão pinçados para as vitórias e que ao ganharem uma mísera medalha, não a terão para si mesmo, fruto do seu próprio mérito, mas para o “Brasil-sil-sil!!!!”.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Acerca da fidelidade divina

Sugiro uma leitura deste artigo, mas tente despir-se de pre-conceitos e pré-julgamentos.

DEUS É FIEL - CÁUDIO GUIMARÃES DOS SANTOS (São Paulo, quinta-feira, 12 de novembro de 2009.)

Eis uma frase que vemos, atualmente, estampada por toda a parte. Mas, afinal, o que diabos significa dizer que Deus é fiel?

EIS UMA frase que vemos, atualmente, estampada por toda a parte: dos gigantescos outdoors aos vidros dos automóveis, sem falar dos templos, das traseiras de caminhões e das faixas ostentadas nas passeatas pop-evangélicas.Num outro momento e lugar, esse fato talvez não merecesse maiores considerações. Afinal, fanatismo religioso e proselitismo exagerado sempre houve neste "mundo de meu Deus", e por sua causa já muito se matou e se morreu.

Todavia, não podemos esquecer que é de um "ungido" Brasil pré-eleitoral que estamos falando, ele mesmo situado numa América Latina "consagrada" a líderes messiânicos que se creem mais do que deuses.E, se apenas alguns deles ousam ser tão blasfemos a ponto de se compararem ao próprio Cristo, todos eles, sem exceção, desejam ver os seus mandatos religiosamente prorrogados "até o final dos tempos". Ou, se tal não for possível, devido às manobras da "maligna" oposição, esperam ao menos passar a faixa presidencial para o discípulo ou a discípula mais amada, na esperança de que, em breve, possam voltar -ressuscitados- ao poder que idolatram de forma luciferina.

Cabe-nos, portanto, investigar, ainda que brevemente, o que diabos significa dizer que Deus é fiel. Em primeiro lugar, não deixa de ser notável que, num mundo onde a infidelidade sempre foi a regra dominante (se é que desejamos ser fiéis à verdade), se procure atribuir a Deus, com especial relevância, não a qualidade de ser bondoso ou justo, mas a de ser fiel. E isso precisamente numa época em que reina a publicidade -a "sacerdotisa-mor" da mentira, a "deusa-mãe" do engodo- e na qual amigo trai amigo, os sacerdotes traem os seus rebanhos, os políticos os seus eleitores, os comerciantes os seus clientes etc.

Não seria isso, talvez, algum tipo de "projeção compensadora", semelhante às discutidas por Freud, Marx, Nietzsche e Feuerbach, que visaria, ao jogar toda a luz sobre a divina perfeição, ocultar nas sombras a podridão humana?

Por outro lado, quando dizemos que Deus é fiel -supondo que saibamos, na teoria e na prática, o que é fidelidade-, na mesma hora nos vem à mente uma questão: a quem, nesse caso, seria Ele fiel? Aos católicos que trucidaram protestantes ou aos protestantes que trucidaram católicos? Aos nazistas que assassinaram judeus nos campos de concentração ou aos israelenses que supliciam palestinos nos campos de refugiados? Aos muçulmanos que mataram "ocidentais" no 11 de Setembro ou aos "ocidentais" que massacram muçulmanos no Iraque e no Afeganistão? A Stálin, Pol Pot e Mao, que eliminaram dissidentes como matamos mosquitos, ou a Hitler, Mussolini e Franco, com suas terríveis atrocidades? Aos corintianos que esfolam palmeirenses (e vice-versa) ou aos cronistas esportivos que, por maldade ou ignorância, estimulam a violência nos estádios?

Infelizmente, se examinarmos as coisas como de fato se apresentam -tendo a história como suprema corte, como dizia Hegel- e não com os benevolentes olhos do "outro mundo", forçoso será concluir que o Pai Eterno se mostra bem mais fiel aos que esbanjam dinheiro nos shoppings de luxo do que às crianças que se acabam nos semáforos da Pauliceia; aos que erguem as odiosas barreiras transnacionais do que aos migrantes de todas as latitudes que não se cansam de tentar atravessá-las; aos malandros que vendem a salvação neste ou n'outro mundo do que aos crédulos que tolamente a compram; enfim, aos malvados, desonestos e egoístas do que aos bons, corretos e solidários.

Eu, que não sou teólogo, ouso crer, piedosamente, que Deus -se é que Ele existe- não é fiel a mortal algum, mas unicamente a Si mesmo, à Sua inextrincável complexidade, à Sua silenciosa incompreensibilidade, à Sua incognoscível natureza (incognoscível, quem sabe, até para Ele).

O que nos resta, a nós mortais, se formos lúcidos, é o enfrentamento cotidiano da terrível solidão desses espaços infinitos, que tanto assustavam Pascal, e dos quais provavelmente não virá resposta alguma, sobretudo se as perguntas forem feitas por pseudossacerdotes ou por políticos de ego inflado.O que precisamos, no fim das contas, é ter coragem para lutar contra a tendência universal da humanidade a se curvar e a obedecer, que é muitíssimo maior do que qualquer eventual vontade de autonomia. Por causa dessa tendência, uns poucos "lobos" espertalhões são capazes de pastorear rebanhos gigantescos de "carneirinhos humanos", que se prostram agradecidos ao jugo do chicote, sempre contentes e -claro- fidelíssimos.

CLÁUDIO GUIMARÃES DOS SANTOS , 49, médico, psicoterapeuta e neurocientista, é escritor, artista plástico, mestre em artes pela ECA-USP e doutor em linguística pela Universidade de Toulouse-Le Mirail (França).

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

O “homem cordial” e a “Lei de Gérson”.

No clássico “Raízes do Brasil”, Sérgio Buarque de Holanda trata do “homem cordial”. Para ele, traço definitivo da índole brasileira é a lhaneza no trato, a hospitalidade e a generosidade. Ele afirma mesmo que a cordialidade é nossa maior contribuição para a humanidade. Mas, alerta que ninguém suponha que esse caráter seja sinônimo apenas de boas maneiras e civilidade. Para o brasileiro, ser afável é, também, um modo de resistir. No Brasil pré-republicano os escravos rebelavam-se quando tinham forças para tal. Quando não, usavam a cordialidade para lidarem com a opressão. A polidez, e por que não a submissão, era um meio deliberado de resistência.


A “Lei de Gérson” é uma instituição informal engastada em nossa sociedade. Por ela, se racionaliza a obsessão em se obter vantagens. Seguir essa “norma” é o mesmo que buscar proveitos, num sentido pejorativo claro - é querer ter benefícios passando ao largo da ética e da moral. A expressão surgiu em 1976 quando o meia-armador da seleção tri-campeão do mundo, Gérson, protagonizava um comercial para os Cigarros Vila Rica. A peça publicitária mostrava a marca como vantajosa por ser melhor e ter um módico preço. No final, sorridente, Gérson dizia carregando no sotaque carioca: “Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também”.


Estranho que um atleta fizesse propaganda de cigarros? A lógica era essa mesma – levar vantagem em tudo, considerando alguns danos. Tudo girava em torno de, numa relação de custo/benefício, ter mais o segundo do que o primeiro. Virou jargão nacional afirmar gostar de levar vantagem em tudo. Mas, em tempos de “politicamente correto” é raro ouvirmos tal expressão, o que não significa que o espírito da “lei de Gérson” tenha caído em desuso.


Acompanhando a Fórmula 1, vi todos os pilotos brasileiros em ação, de Emerson Fittipaldi a Felipe Massa, passando por Nelson Piquet (pai) e Airton Senna. Dois deles me chamam a atenção por atitudes fora e dentro de seus bólidos. Rubens Barrichello seria nosso “homem cordial” e Nelson Piquet (filho) o que se utiliza da “Lei de Gérson”.


Barrichello é cordial, simpático e alegre. Não lembro tê-lo visto agressivo nem quando foi humilhado no episódio em que, liderando o Grande Prêmio da Áustria (12/05/2002) e a caminho da vitória, foi obrigado pelo chefe de sua equipe (Ferrari) a deixar Michael Schumacher passar à sua frente na reta final da corrida. Foi um vexame, uma decepção total! Lembro-me do narrador da corrida (não, não era Galvão Bueno) vibrando e pedindo o “tema da vitória” para logo em seguida gritar desesperadamente que aquilo era um absurdo.


O orgulho nacional estava ferido de morte. Como iríamos gritar Brasil-sil-sil!!! O que faríamos naquele resto de domingo, dia das mães, sem uma vitória para nos entorpecer? Nosso complexo de vira-latas nelson-rodriguiano aflorou à epiderme. Sublevados, exigíamos uma reparação. Queríamos ver Barrichello respondendo à altura da tradição inaugurada por Piquet e Senna. Mas, ele fez-se cordial e disse que tudo era assunto interno da equipe. Sabia ele de sua fragilidade e que se desancasse a falar sofreria penalidades. Era mesmo consciente do raquitismo de seu papel e, adotando a tática dos escravos, resistiu cordialmente.


Sempre que, durante as corridas, a Ferrari “segurava” Barrichello nos boxes por 1 ou 2 segundos visando beneficiar Schumacher eu torcia para que atirasse o capacete em seu carro, em frente às câmeras de TV, e mostrasse que não era leniente para com a injustiça. Mas, ele ria cordialmente. Certa vez, esquiando nos Alpes suíços, disse que (SIC) “Michel é um bom amigo e a Ferrari é a minha segunda casa”. Eu queria mesmo que ele asseverasse os absurdos a que era submetido. Mas, nosso cordial piloto calava receoso de repreensões e de demissão. Apenas dizia que um dia revelaria, em livro, ao mundo tudo o que se passava. Como se o mundo já não soubesse.


Neste ano, com um carro competitivo e chances reais de ser campeão, ele voltou a aceitar o papel de segundo piloto de sua equipe. No Grande Prêmio da Espanha fez, inexplicavelmente, três paradas enquanto seu companheiro Jenson Button fazia duas. Problemas de freios, motor e pneus sempre aconteciam no carro dele, nunca no do seu companheiro. Como sempre, se vitimizou sem admitir que fosse sim preterido. E disse que “se tiver a impressão de que a equipe esteja favorecendo Button, eu paro de correr”. O seu chefe, Ross Brawn (que na Ferrari o mandava deixar Schumacher passar) disse que não havia favoritismo. Mas, na F1, como na vida, existem formas subliminares de se fazer comunicados.


Nelsinho Piquet chegou na F1 referendado pelo pai tri-campeão e capitalizando as esperanças verde-amarelas de voltarmos a ter um novo herói das pistas. Foi se mantendo sem ter resultados palpáveis. Foi claudicando num papel de segundo piloto nos deixando a sensação de que não faria jus ao sobrenome. Mas, eis que surgiu a oportunidade de garantir espaços em sua equipe, de assinar um novo contrato e cessar as ameaças de demissão que sofria. Quando lhe propuseram o embuste que adulteraria os rumos do Grande Prêmio de Cingapura de 2008 ele não pestanejou. Fiel seguidor da “Lei de Gérson” entendeu que é imperativo maximizar benefícios e minimizar custos mesmo prejudicando a outros. Piquet Jr. não quis saber de nada e de ninguém, queria garantir-se na equipe para a temporada de 2009. Como Macunaíma (o herói sem caráter de Mário de Andrade) ele lançou mão da malandragem para fazer frente aos outros pilotos, posto que não conseguisse fazê-lo em disputas com Condições Normais de Temperatura e Pressão.


Muito já se falou que herdamos dos escravos o horror ao trabalho e dos índios a preguiça. E que o amálgama disso foi essa malandragem sem fim, essa contumaz atitude de querer levar vantagem em tudo, utilizando o estratagema da cordialidade. Mesmo não concordando com isso, admito que o malandro é parte de nosso imaginário e de nossa realidade. O mandrião resiste aos modelos, regras e leis para obter vantagens. Ele resiste ao invés de atacar. É cordial, nunca violento. É astuto e vive de “expediente”, como se dizia no passado. Assim como nossos dois intrépidos pilotos, o madraço sempre dá um “jeitinho” em tudo para ir driblando as dificuldades e assim sobreviver ou, como queira, “se dar bem e levar vantagem em tudo”.



Outubro/2009.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O dilema Jack Bauer – altercações sobre legitimidade e legalidade.

Sob que aspectos um ato legal torna-se ilegal e vice-versa? Em que medida a violência torna-se um direito? Pode o cidadão levantar-se contra o Estado? Estas questões, tratadas desde Maquiavel, me aparecem quando atento para nossa realidade, onde violência e criminalidade (organizada ou não), corrupção e desmandos institucionais de toda sorte ditam nossa conduta.


Quando os governos merecem nossa lealdade e quando devemos negá-la? Quem deve julgar, e com que critérios, se as leis e as ações que exigem lealdade ao Estado se justificam? O povo? A justiça? Ou ambos? Tecnicamente a autoridade é legítima. Mas, deve haver limites para ela quando utilizada pelo Estado, através de suas instituições coercitivas.


No Brasil, existe o Estado e a lei, mas o Estado de Direito é constantemente ameaçado, quando não inexiste. Vejamos os ataques às instituições coercitivas (e a sociedade) promovidos por organizações criminosas, não simples bandos ou quadrilhas, em São Paulo (em maio de 2006) e recentemente em Salvador. Elas possuem controle social e territorial, dominam os presídios onde seus líderes são confinados, têm um forte poder corruptor que as leva para dentro das instituições, além de influenciarem eleições e controlarem o tráfico de drogas e crimes correlatos ou não. Ao se sentirem ameaçadas pelas tentativas dos governos estaduais em sufocá-las, contra-atacam acuando-os. O cidadão, indefeso, clama por segurança, mas o Estado não consegue provê-la e segue se deslegitimando perante a população.


Prova cabal de como o Estado não consegue prover segurança pública, uma de suas funções precípuas, é que os chefões dessas complexas redes criminosas são encarcerados em presídios de segurança máxima, submetidos a duros regimes disciplinares, e mesmo assim continuam a gerir suas atividades ilícitas usando uma rede de comunicação via celulares, advogados e familiares.


É comum vermos atores políticos confundirem legitimidade e legalidade. Na academia não é diferente e para o senso comum “se está na lei é legítimo”. Constatei que os dicionários corroboram para que estes termos sigam parecendo sinônimos. No Aurélio, legitimar é o “ato de tornar legítimo para todos os efeitos da lei, legalizar”; e legalizar é o “ato de tornar legal, dar força de lei, autenticar, legitimar, justificar”. A questão não é apenas de ordem semântica, ela é jurídica e, acima de tudo, política.


Na cassação dos governadores da Paraíba, Cássio Cunha Lima, e do Maranhão, Jackson Lago, viu-se esta distorção. Afirmava-se que a democracia é ameaçada por processos judiciais que modificam o resultado das urnas e que a legalidade de uma eleição, baseada na inconteste expressão da vontade popular, não pode ser infringida. Mas, nosso sistema político baseia-se na separação dos poderes. O judiciário deve interferir se o executivo infringe leis, deslegitimando-se. A decisão popular é soberana e legal, mas pode equivocar-se e se ilegitimar, daí a intervenção judicial. Se assim fosse, Collor não teria sofrido o impeachment, já que foi eleito. E bem sabemos como eleitores e políticos usam o voto como moeda de troca e não para decidir quem representa quem.


Filósofos da política moderna se preocuparam com essa distinção. Para Hobbes, o Estado pode exerce legalmente o monopólio da coerção, desde que provenha segurança aos cidadãos, se não o fizer torna-se ilegítimo. Locke fazia a distinção observando que o direito consiste na liberdade de fazermos, ou não, algo e que é a lei que determina o que deve e pode ser feito - costumes e preceitos só viram lei se fruto da vontade dos homens. Rousseau relacionava legitimidade com os direitos e afirmava que a sociedade só se desenvolve se for consignada pela vontade geral do povo, de onde emana o poder. Kant citava o caso do cidadão que discorda do imposto a ser pago. Mesmo sendo legítima sua divergência, ele, de posse de sua razão, cumpre seu dever, já que se não o fizer sofrerá sansões. O cidadão só faz o que não concorda por legitimar o Estado, se considerar apenas o aspecto legal, poderá torna-se inadimplente se, e é o caso do Brasil, contar com a impunidade.


Os fundamentos iluministas (a crença na ciência e na razão e o compromisso com os direitos do homem) influenciaram os argumentos dos contratualistas a respeito da origem e dos fins da legitimidade política e de sua íntima relação com o consentimento – um Estado só é lídimo para agir se os cidadãos lhe derem permissão. E esta anuência só ocorre se ele cumpre seu papel de, por exemplo, prover segurança e punir aqueles que decidem viver à margem da lei. Se aceita e/ou cria formas para que a impunidade possa grassar por entre suas instituições se deslegitima perante seus cidadãos. O leitor já sabe que me refiro ao Estado brasileiro.


O cientista político Ian Shapiro mostra, em “Os fundamentos morais da política”, que a legitimidade dos Estados relaciona-se ao grau de preservação, ou enfraquecimento, das liberdades que eles podem (ou querem) promover. O arcabouço jurídico de um Estado pode ser utilizado para garantir ou cercear a lei que tanto serve a democracias quanto a ditaduras. Mas, a legitimidade só é útil a um sistema em que o exercício do poder se dá prioritariamente para o bem-estar coletivo. Uma lei não é legítima por definição. É o uso que se faz dela que a torna legítima ou ilegítima.


As instituições políticas que dão forma ao Estado não se bastam por serem legais (instituídas), precisam ser, também, legítimas. Os contratualistas, que foram dando forma ao Estado-nação, o fizeram a partir das normas que o regulam. E para eles, é o caso de Rousseau, as normas devem ser justas e, como queria Montesquieu, respeitadas.


Não basta um Estado ter leis (rule of law), onde espera-se que todos a respeitem. Isso não permite saber se as instituições conseguem cumprir seus papéis adequadamente, i.e., não dá para saber se elas conseguem distribuir bem-estar. É preciso que Estado e governo sejam pela lei (rule by law), i.e., elas precisam serem justas e propiciar as melhores condições para a distribuição do bem-estar. O cidadão precisa crer que as leis vão ser (para o bem ou para o mal) aplicadas. Só assim ele vai consignar ao Estado, e ao governo, sua confiança, i.e., legitimá-los.


A injustiça é praticada na sua forma mais perversa quando é instituída por uma determinação legal. Se uma injustiça é formalizada pela lei dificilmente pode-se dela defender. É o caso do Ato Institucional n° 5, decretado pelo governo militar de Costa e Silva em 1968 - a ditadura era, paradoxalmente, constitucionalista. Como a própria nomenclatura demonstra, ele era legal (foi institucionalizado), mas não tinha veleidades de ser legítimo.


Portanto, nem tudo o que é legítimo é legal. É o caso do dilema Jack Bauer – o protagonista do seriado “24 horas”. Tecnicamente, ele é contra o uso da tortura, mas decide utilizá-la para arrancar de um terrorista a informação que levará a desativação de uma bomba que, se acionada, matará centenas de pessoas. Que não sirva de orgulho, mas temos versão própria do agente da OCT – o Cap. Nascimento (do filme Tropa de Elite) utiliza a tortura para conduzir com discutível eficiência seus interrogatórios. É, sim, legítimo usar qualquer meio para forçar um terrorista ou traficante a confessarem atos criminosos que prejudicam a comunidade, mas é legal?


E nem tudo o que é legal é legítimo. As Medidas Provisórias, usadas em profusão pelo governo federal são legais, previstas em nosso ordenamento jurídico, mas não são legitimas, por desrespeitarem o princípio da separação dos poderes. Simples assim.


Não devem existir dilemas entre legitimidade e legalidade, e sim complementaridades. É para isso que ainda temos que caminhar se quisermos ter um Estado e um governo legitimados por nós mesmos, que seja a um só tempo dá e pela lei.


Outubro/2009.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

A "PRÉ-HISTÓRIA" DO ROCK IN ROLL

Esse vídeo é do tempo em que não se pensava em amarrar cachorro com nada, muito menos com linguiça, é, digamos, a "PRÉ-HISTÓRIA" DO ROCK IN ROLL


Zona cinzenta democrática

Um breve esclarecimento antes da leitura

Escrevi este artigo a quase dois meses atrás. Senti-me provocado com o golpe em Honduras e com a nossa realidade política, onde os entulhos autoritários vindos da ditadura militar continuam por aí para quem quiser (e puder) vê-los. Imaginei a hipótese, não de toda absurda, de termos um revés autoritários no Brasil, mas logo descartei essa possibilidade por aceitar o conceito de zona cinzenta (gray zone, como dizem os americanos) como algo factível para explicar nossa realidade.

Alerta aos caros leitores - não acho que estamos na eminência de termos um golpe de Estado tal qual o de Honduras, mas também não consigo ver uma sólida democracia que resista às investidas autoritários que vem acontecendo insistentemente.

Zona cinzenta democrática


No Brasil temos eleições assíduas e alternância no poder há 24 anos. Não muito diferente de Honduras, onde por 19 anos, procedimentos democráticos foram utilizados, até que um golpe de Estado solapou-os. Esses países têm democracias frágeis por não seguirem a descrição procedural mínima sugerida por Scott Mainwaring. Por ela, democracia tem que ter eleições competitivas, livres e críveis; cidadania vigorosa, liberdades civis e direitos políticos; governo de fato e militares controlados pelos civis.


Em artigo, o cientista político Jorge Zaverucha demonstrou que, para deporem o presidente Manuel Zelaya, os militares ancoraram-se no artigo 272 da Constituição, de forma que as Forças Armadas deveriam “defender a soberania da República, manter a paz e a ordem pública”. Em nossa Constituição, o artigo 142 determina às Forças Armadas papel semelhante, ao afirmá-las como garantidoras dos poderes constitucionais, da lei e da ordem. Aqui, como lá, entulhos autoritários permanecem no ordenamento jurídico, nos impedindo de olvidar de nosso passivo ditatorial.


A justificativa dos golpistas foi barrar o projeto continuísta de Zelaya. Tornou-se hábito, na América Latina, governos reivindicarem a modificação de suas constituições para se reelegeram, até indefinidamente, como quer Hugo Chávez. No Brasil ainda há, nos três poderes, quem queira ver Lula reconduzido ao terceiro mandato.


Considerando que eleição é necessária pra termos democracia, em que pese não garantir sua solidez, podemos assegurar que as possibilidades de um revés autoritário esvaíram-se? Os que, olhando para Honduras, diziam sim, reverão suas análises? Já no Brasil, temos uma condição letárgica, onde nem fortalecemos as instituições, ao ponto delas não serem ameaçadas, e nem retroagimos para uma ditadura. Vivemos em uma zona cinzenta entre o autoritarismo e a democracia.


Medições feitas pelo Latinobarômetro dão conta de que cerca de 40% dos latino-americanos aceita trocar seus governos democráticos por governos fortes que promovam desenvolvimento econômico e combatam a corrupção. Isto corrobora com a idéia de que a democracia precisa de elementos substanciais para se sustentar, além dos procedurais. Por aí se entende por que parte da população hondurenha apoiou o golpe patrocinado pelo poderes Judiciário e Legislativo


Vejamos lições recentes. Em 1992, Alberto Fujimori apoiou-se nas Forças Armadas peruanas para, explorando a corrupção e a guerrilha, dar um golpe de Estado. Antes, quis saber se a população concordava com o fechamento, devido à corrupção, do Congresso e do Judiciário. 71% dos entrevistados aprovaram a dissolução do legislativo e 89% concordaram com a intervenção no judiciário. Quando a comunidade internacional condenou o golpe, o “Chino” proclamou que “o povo está comigo!”.


No mês de abril, o senador Cristovam Buarque lançou estapafúrdia ideia de um plebiscito que inquirisse a população sobre o fechamento do Congresso brasileiro, devido incontáveis escândalos, a disfunção causada pelas medidas provisórias do poder Executivo e as tentativas do Judiciário de fazer a reforma política que o parlamento insiste em não realizar.


O senador nada disse sobre como e quem fecharia o Congresso, caso a população brasileira, tal qual a peruana, assim o quisesse. Na noção clássica latino-americana de golpe de Estado é o Exército, a pedido da sociedade civil, quem enquadra o parlamento.


Dalmo Dallari defendeu o fim do sistema bicameral, i.e., que o Senado seja fechado, partindo das premissas de que ele foi historicamente usado para a promoção dos interesses da elite, que muitos senadores corruptos não são punidos e continuam sendo reeleitos e que os acordos políticos só se justificam pela formação da maioria. Dallari não fez referência ao fato de que o fechamento do Senado debilitaria mais ainda o sistema representativo. Sem contar que se o Senado não nos fará falta, provavelmente a Câmara também não. Isso abriria temerários precedentes.


No golpe civil/militar de 1964, parlamentares foram cassados sob acusação de corruptos. Golpes são racionalizados pela necessidade de se aplicar remédios amargos em doentes graves. Discursos fáceis, tentativas de se perpetuar no poder e asfixia do Congresso acabarão com o pouco oxigênio que nossa democracia ainda respira.


Governo e parlamento só são legítimos, se consentidos pela população. Esta anuência se materializado pelo voto, não pela força das armas. Schumpeter se referia à democracia como um método institucional que escolhe os que vão decidir e que tem a capacidade de substituir governos de modo que os escolhidos não se tornem força inamovível. Devemos nos contentar com isso? Não, é insuficiente. Mas, se não consolidarmos nem isso, como avançaremos para um sistema que contemple amplos aspectos do funcionamento de um Estado que seja a um só tempo legal e legítimo, portanto, de direito e democrático?


Desde a proclamação da República, ainda não tivemos mais de 35 anos contínuos de democracia, sem que autoritarismos de toda sorte solapassem as instituições. Do fim do regime militar, em 1985, até aqui, somamos menos anos do que os vividos sob as duas ditaduras do século XX. Nossa frágil democracia eleitoral tem muito que evoluir.


Setembro/2009.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Em um passado, já um tanto quanto distante, fui um militante de esquerda. Atuei no movimento estudantil e em uma Organização Não Governamental, sempre representando as organizações de esquerda onde atuava. Na metade da década de 90, cansado de dar "murros em ponta de facas", deixei a militância sendo, claro, acusado de "traidor da causa". Entendo bem o sentimento de "sentir vergonha" que alguns petistas têm, tardiamente diga-se de passagem, manifestado. Sentia, sim, vergonha de ter feito parte de organizações que repetiam enfaticamente os erros dos que elas diziam combater. Clóvis Rossi define bem essa questão em seu artigo de hoje (21 de agosto de 2009) na Folha de São Paulo.

Do orgulho à vergonha - CLÓVIS ROSSI

SÃO PAULO - Durante a campanha eleitoral de 1989, esta Folha recebeu em almoço todos os principais candidatos. Menos, salvo erro de memória, Fernando Collor, no que se revelaria uma profilática premonição do jornal.

Quando já terminava o almoço com Luiz Inácio Lula da Silva, o candidato do PT pousou o braço sobre os ombros de Octavio Frias de Oliveira, o "publisher", morto em 2007, e disse: "Frias, você ainda vai se orgulhar desse petezinho", como se o anfitrião fosse PT desde criancinha. Não era, claro, mas nunca escondeu seu respeito pelo que considerava padrão ético do partido.

Vinte anos depois, a profecia de Lula revela-se tão falsa como era equivocada a crença do "publisher" desta Folha. Hoje, até um petista como o senador Flávio Arns diz sentir "vergonha", não orgulho, desse "petezinho".

Aliás, "petezinho" é expressão adequada, pelo nanismo ético e moral de sua camada dirigente, que deve ter contaminado boa parte da militância, talvez toda ela, a julgar pelo silêncio ensurdecedor a respeito do espetáculo de pouca vergonha que marca o PT. De quebra, ainda há o nanismo intelectual dos acadêmicos petistas, incapazes de abrir a boca, embora um deles tenha escrito, na esteira do "mensalão", que não mais admitiria nem sequer o sumiço de um alfinete do Palácio do Planalto.

Nada disso, no entanto, surpreende. Os intelectuais petistas se masturbaram com a debiloide teoria da conspiração para explicar os pecados do partido, mesmo ante a contundente evidência de que a única conspiração era a dos fatos. O que na verdade surpreende é a surpresa do senador Arns. Deveria ter sentido "vergonha" quando a direção do seu PT foi chamada de "organização criminosa" pelo então procurador-geral da República. Tudo o que veio depois é até café com leite.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

O BRASIL EXPLICADO EM GALINHAS

Veríssimo, sempre ele, consegue explicar o Brasil de forma bem mais eficiente que muito intelectual. É bem engraçado, mas, infelizmente, este é o Brasil. Qualquer ladrão de galinha consegue virar uma pessoa influente. Note, que chega um momento do texto que não mais sabemos quem é o delegado e quem é o ladrão.

O BRASIL EXPLICADO EM GALINHAS!! Luis Fernando Veríssimo.

Pegaram o cara em flagrante roubando galinhas de um galinheiro e o levaram para a delegacia.

Delegado: Que vida mansa, heim, vagabundo? Roubando galinha para ter o que comer sem precisar trabalhar. Vai para a cadeia!

Ladrão: Não era para mim não. Era para vender.

Delegado: Pior, venda de artigo roubado. Concorrência desleal com o comércio estabelecido. Sem-vergonha!

Ladrão: Mas eu vendia mais caro.

Delegado: Mais caro?

Ladrão: Espalhei o boato que as galinhas do galinheiro eram bichadas e as minhas galinhas não. E que as do galinheiro botavam ovos brancos enquanto as minhas botavam ovos marrons.

DelegadoNegrito: Mas eram as mesmas galinhas, safado.

Ladrão: Os ovos das minhas eu pintava.

Delegado: Que grande pilantra... (mas já havia um certo respeito no tom do delegado). Ainda bem que tu vai preso. Se o dono do galinheiro te pega...

Ladrão: Já me pegou. Fiz um acerto com ele. Me comprometi a não espalhar mais boato sobre as galinhas dele, e ele se comprometeu a aumentar os preços dos produtos dele para ficarem iguais aos meus. Convidamos outros donos de galinheiros a entrar no nosso esquema. Formamos um oligopólio. Ou, no caso, um ovigopólio.

Delegado: E o que você faz com o lucro do seu negócio?

Ladrão: Especulo com dólar. Invisto alguma coisa no tráfico de drogas. Comprei alguns deputados. Dois ou três ministros. Consegui exclusividade no suprimento de galinhas e ovos para programas de alimentação do governo e superfaturo os preços.

O delegado mandou pedir um cafezinho para o preso e perguntou se a cadeira estava confortável, se ele não queria uma almofada. Depois perguntou:

Delegado: Doutor, não me leve a mal, mas com tudo isso, o senhor não está milionário?

Ladrão: Trilionário. Sem contar o que eu sonego de Imposto de Renda e o que tenho depositado ilegalmente no exterior.

Delegado: E, com tudo isso, o senhor continua roubando galinhas?

Ladrão: Às vezes. Sabe como é.

Delegado: Não sei não, excelência. Me explique.

Ladrão: É que, em todas essas minhas atividades, eu sinto falta de uma coisa. O risco, entende? Daquela sensação de perigo, de estar fazendo uma coisa proibida, da iminência do castigo. Só roubando galinhas eu me sinto realmente um ladrão, e isso é excitante. Como agora fui preso, finalmente vou para a cadeia. É uma experiência nova.

Delegado: O que é isso, excelência? O senhor não vai ser preso não.

Ladrão: Mas fui pego em flagrante pulando a cerca do galinheiro!

Delegado: Sim. Mas, primário, e com esses antecedentes.....

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Paradoxalmente, surgiu uma vantagem, para a sociedade, desse processo autofágico que os senadores iniciaram desde que Sarney, com a firme contribuição de Lula e do PT, enfiou de goela abaixo sua candidatura a presidência do senado. Nessa luta para destruirem uns aos outros vão surgindo algumas verdades enterradas nos porões do Congresso Nacional.
Pedro Simon revelou, sem meias verdades, como se deu o processo (ilegal e ilegítimo) que levou Sarney tornar-se Presidente da República. A entrevista deixa bem claro que quem deveria assumir a presidência, devida a morte de Tancredo, era Ulysses Guimarães e não José Sarney. Isso só aconteceu porque os militares, sempre eles, interviram.


JORNAL O ESTADO DE SÃO PAULO - Quarta-Feira, 05 de Agosto de 2009.

http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20090805/not_imp413697,0.php

Leandro Colon, BRASÍLIA

Depois do embate com Fernando Collor (PTB-AL) em plenário anteontem, o senador Pedro Simon (PMDB-RS) afirmou que não reagiu porque ficou preocupado com o olhar do colega fixo nele o tempo todo. Collor disse a Simon para "engolir" as palavras.
Em entrevista ao Estado, Simon voltou a criticar o presidente José Sarney (PMDB-AP). Afirmou ainda que ele deu um "golpe" para assumir a Presidência da República em 1985. E provocou Renan Calheiros (PMDB-AL). "Renan é a faixa mais negra da história deste Congresso."

O senhor não reagiu aos ataques do Collor. Por que o silêncio?
Eu fiquei preocupado, com medo do olhar dele, da tensão que ele estava na primeira fila. Eu não tinha falado nada dele, mas do Renan, que já foi líder dele. Mas o Collor já entrou com aqueles olhos esbugalhados. E eu pensei: não vou entrar nessa. Mas ele disse que tem coisas em relação a mim, e que vai dizer quando quiser. Vou cobrá-lo.

Por que o senhor não fez o discurso na presença de Sarney?
Eu pensei que ele ia ficar em plenário, mas ele saiu antes de eu me manifestar.

Então por que não aproveita quando ele estiver em plenário e pede novamente sua saída?
Já fiz isso. E já tenho a resposta de que ele não vai sair. Ele tem o apoio do Lula. O Lula é o homem da intimidade de Renan, Sarney e Jader Barbalho. Dois renunciaram à presidência do Senado e outro (Sarney) está nesta situação.

O senhor se sentiu humilhado em plenário?
Como vou me sentir humilhado por esses cidadãos? Quem são eles? O que eles representam? O que passou e que não tinha que voltar. Um passado triste. Renan é a faixa mais negra da história deste Congresso. Collor é uma pessoa que sofreu uma cassação.

O Renan fez a ligação do senhor com uma empresa chamada Porto do Sol. O que é Porto do Sol?
É uma empresa cópia do Banco do Povo de Bangladesh, é uma grande entidade no Rio Grande do Sul. Num período, um filho meu, em nome do governo, foi diretor do banco, que dá dinheiro pequeno para microempresa. Mas não há irregularidade.

Onde começou sua desavença com o presidente Sarney?
Quando fui contra a candidatura dele à Vice-Presidência da República. O Tancredo Neves estava no quarto do hospital de Base, em 14 de março de 1985 (um dia antes da posse), perguntamos o que fazer ao dr. Ulysses Guimarães. E chegou o general Leônidas (ministro do Exército, levado por Sarney). O general disse que Sarney deveria assumir. Eu comecei a falar e dr. Ulysses não deixou eu falar e confirmou o Sarney. Aí foram embora Sarney e o general. Nós ficamos no quarto, e dr. Ulysses disse que estava tudo preparado há meses e que o general Leônidas estava comandando tudo. E o Sarney assumiu.

O senhor disse que foi um golpe?
Sim, um golpe, claro que foi. Deu golpe e virou presidente. E nós calamos a boca. O Tancredo não tinha assumido, não era presidente. Quem tinha de assumir era o presidente Congresso.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Este artigo ficou muito bom. No entanto, é preciso atentar para os perigos de se fazer afirmações como: “Atos e palavras mostrando o quanto o Senado se torna inútil” e “todos afundando juntos”. Tão ruim quanto ter um Congresso como o nosso é não ter Congresso algum. Diria mesmo que é pior, pois a pretensão é evoluir a partir do que temos e não retroceder para um tempo de autoritarismo. Se o Congresso é inútil, só resta fechá-lo – eis o problema: vamos fechá-lo? E o que vamos colocar no lugar dele? Um ditador incorruptível?

São Paulo, terça-feira, 04 de agosto de 2009

ELIANE CANTANHÊDE

"Firmíssimo"

BRASÍLIA -
Como estava escrito nas estrelas, o fim do recesso e o reinício dos trabalhos do Senado providenciaram um triste espetáculo para a opinião pública. Mais um.
Antes, atos secretos. Agora, palavras explícitas. Atos e palavras mostrando o quanto o Senado se torna inútil, inchado de funcionários, caríssimo na sua distribuição de favores e agora palco de agressões e de revisão da história.

Sentado solenemente na presidência, José Sarney assistiu a parte da sessão, enquanto sua tropa de choque recuperava velhas histórias para distribuir agressões e insinuações aos que insistem na renúncia. Em vez de presidir uma instituição, preside uma guerra que tende a se transformar numa guerra de pizzas.

Renan Calheiros, que não tem muito a perder depois de meses de pressão, da renúncia melancólica e da volta pelas urnas, é não apenas o líder da reação para manter Sarney na presidência que já foi sua e lhe escapou pelas mãos. É também o autor do script "bateu, levou".

Aliás, ao lado de Fernando Collor, outro que também já passou por tudo isso e aproveitou a confusão para apresentar ao vivo e em cores a sua versão de que tudo o que gerou CPI, renúncia e caras-pintadas, 15 anos atrás, foi uma farsa "urdida nos subterrâneos".

Renan luta para sobreviver e se agarrar à importância que, em simbiose com Sarney, ainda tem no PMDB e nos caminhos do partido em 2010. Collor luta para renascer de fato e lavar sua biografia para além dos limites de Alagoas.

A novidade no quebra-quebra de ontem é que Pedro Simon, que sempre jogou a pá de cal em cargos e mandatos moribundos, desta vez não pôde brilhar sozinho. Enfrentou duras reações, atrapalhou-se mais de uma vez, cansou.

Cristovam Buarque no seu novo papel de acusador, Wellington Salgado se destacando como defensor, Mão Santa com ar de sono presidindo o final da sessão. Tudo surreal. E todos afundando juntos.

domingo, 26 de julho de 2009

AS MÁXIMAS DO MILLÔR

As máximas do Millor são maravilhosas. A ironia junto com o senso de humor, muito bem dosados, resulta em frases interessantíssimas. Isto é só uma seleção, que eu fiz, e que pode ser arbitrária. Mais, muito mais, pode ser encontrado no http://www2.uol.com.br/millor/index.htm


O século XX nos deu o cinema, o telefone, o automóvel, o avião, a penicilina, a asa-delta, o computador, tanta coisa maravilhosa. Mas a maior invenção de todos os tempos é do século XXI, o Google. A cultura prêt-a-porter.


Quem sai aos seus não endireita mais.


Celebridade é um idiota qualquer que apareceu no Faustão.


Você pode evitar descendentes. Mas não há nenhuma pílula para evitar certos antepassados.


O dinheiro não é tudo. Tudo é a falta de dinheiro.


O otimista não sabe o que o espera.


Proudhon dizia que toda propriedade é um roubo. A elite brasileira acha que todo cargo público é uma propriedade.


Quem confunde liberdade de pensamento com liberdade é porque nunca pensou em nada.


Toda lei é boa desde que seja usada legalmente.


A Justiça é cega, sua balança desregulada e sua espada sem fio.


Um rato não pode ser juiz na partilha de um queijo.


Tá bem, nós todos / Vivemos a perigo. / Mas meus males são os piores. / Acontecem comigo.


Beber é mal. Mas é muito bom.


Nascer estadista em país subdesenvolvido é como nascer com um tremendo talento de violinista numa tribo que só conhece a percussão.


No Brasil o otimista dorme com medo de acordar pessimista.


O Brasil é realmente muito amplo e luxuoso. O serviço é que é péssimo.


A diferença fundamental entre Direita e Esquerda é que a Direita acredita cegamente em tudo que lhe ensinaram, e a Esquerda acredita cegamente em tudo que ensina.


E eu que sempre pensei que o Mangabeira Unger era uma piada do Otto Lara Resende.


O crime não compensa. Mas de que é que vivem os juízes do Supremo Tribunal?


Anatomia é uma coisa que os homens também têm, mas que, nas mulheres, fica muito melhor.


Metafísico é o sujeito que demonstra a existência de uma coisa que não existe.


E, no fim, o decapitado se casa com a perneta. Realmente - uma história sem pé nem cabeça.


Confirmado: o bispo Macedo está comprando o passe do padre Rossi.


Para bom entendedor meia palavra basta. Entendeu ...ecil?

sexta-feira, 24 de julho de 2009

A esquerda brasileira em geral, e o PT mais especificamente, costuma dividir o mundo em duas partes. Uma que é branca, boa, pura e que, portanto, tudo pode fazer e outra que é preta, ruim, impura, que deve ser condenado pelos seus erros. A democracia não tem valor universal para nossa esquerda, se tivesse o Presidente Lula já teria condenado todos os racistas do mundo e não apenas aqueles que ela considera que estam do lado errado do mundo.

Cadê os outros?
Sérgio Besserman Vianna - economista



O secretário de Relações Internacionais do PT, Valter Pomar, chamou o chanceler de Israel, Avigdor Liberman, de racista. Querem saber? Eu também acho que o Liberman é racista e acho, além do mais, que a declaração do PT é oportuna. Política externa é assunto importante da cidadania...


Contudo, há um problema... e ele é grande, enorme mesmo... Se o PT considera oportuno, como eu considero, criticar o Liberman e, por tabela, o perigoso governo do radical Netanyahu, fica na forte obrigação ética de pronunciar-se com a mesma ênfase sobre o racista, facista, homofóbico, opressor de mulheres, perigoso radical e fundamentalista religioso ignorante presidente do Irã Ahminejad quando de sua visita ao Brasil.


Para não falar do matador de cristãos, genocida, pária e condenado internacionalmente presidente do Sudão Omar Al Bashir, que também é, junto com o Ahminejad, queridinho seleto do governo brasileiro.


Fico no aguardo, na esperança de assistir essa demonstração de independência do PT em relação ao governo, de uma fortíssima condenação pública desses dois personagens do mal (como também são, na minha opinião, o Netanyahu e o Liberman). Não fazê-lo será pusilaneme e, pior, racista!

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Sobre o golpe em Honduras.

Objetivamente, este é o estado de coisas que o golpe em Honduras ensejou.


Oscar Arias - A ameaça de militares poderosos
O Estado de São Paulo, 11 de julho de 2009.

Paira sobre a AL um clima de incerteza e tumulto que, eu esperava, nossa região não voltaria a experimentar. O golpe em Honduras traz o triste lembrete de que, apesar do progresso obtido pela região, os erros do passado ainda estão muito próximos.


Mas não precisamos olha o futuro para saber que o incidente deveria constituir um sinal de alertar para o hemisfério. Temos de reconhecer que tais acontecimentos não são atos aleatórios. São o resultado de erros sistêmicos de passos em falso para os quais muitos de nós vem alertando há décadas. Eles são o preço que pagamos por uma das maiores loucuras da nossa região: o insensato aumento dos gastos militares.


O golpe em Honduras demonstra mais uma vez, que a combinação de militares poderosos e democracias frágeis cria um risco terrível. Ele demonstra que, enquanto não melhorarmos esse equilíbrio, deixamos a porta aberta para os que obtêm o poder pela força. Além disso, mostra o que costuma ocorrer quando os governos desviam para suas forças militares recursos que poderiam ser usados para fortalecer suas instituições democráticas, para construir uma cultura de respeito pelos direitos humanos e aumentar seus níveis de desenvolvimento humano. Essas opções insensatas fazem com que a democracia de uma nação seja pouco mais do uma casca vazia, ou um discurso sem sentido


Mais aviões de combate, mísseis e soldados não proporcionarão mais pão para nossas famílias ou remédios para nossos hospitais. Tudo o que isso pode fazer é desestabilizar uma região que continua considerando as Forças Armadas como o árbitro final dos conflitos sociais.

É proibido silenciar

Clóvis Rossi nos dá uma ótima definição para accountability. Talvez seja mais fácil explicá-lo pelos exemplos de países como o Brasil – onde “acountabilidade” é algo que inexiste – do que pela realidade de países onde a democracia está consolidada.


Folha de São Paulo – 19 de Julho de 2009.
É proibido silenciar

SÃO PAULO - Uma vez, anos atrás, um acadêmico norte-americano especializado em América Latina (o nome se perdeu nas brumas da memória) comentou comigo que a palavra "accountability" não tem tradução fiel, precisa, nem em português nem em espanhol.


O sentido mais próximo é "prestação de contas". Mas não alcança o mais profundo do conceito, que é o de introjetar a obrigação de render contas de seus atos, especialmente se se é agente público.Posto de outra forma: o funcionário público, de qualquer calibre, tem marcada na alma a certeza de que deve explicações ao público, mesmo quando o público não as esteja pedindo.

É essa consciência, indispensável à construção da República, que o senador José Sarney demonstra não possuir, ao recorrer a uma frase de Sêneca para calar-se. Essa história de combater o que chama de "injustiça" com "o silêncio, a paciência e o tempo" não passa de fuga às suas responsabilidades e de traição ao conceito de "accountability" que ele, como funcionário público da mais alta graduação, deveria ser o primeiro a defender.

De quebra, Sarney refugia-se na velhíssima e fajutíssima tese de perseguição da mídia. Não, senador, é perseguição dos fatos, e enquanto eles não forem total e definitivamente explicados, continuarão a persegui-lo, no Maranhão, em Brasília, onde for.

É essa fuga à "accountability" que explica os parlamentares que se lixam para a opinião pública. Ela paga os salários de todo esse "band of brothers", mas eles não se sentem compelidos a dizer ao púbico o que fazem, o que só aumenta a suspeita de que o que fazem só cabe mesmo em BOs.O caso de Sarney é mais grave porque tem um espaço semanal, aqui ao lado, em que poderia dar todas as explicações sem ser interrompido por perguntas. Prefere mudar de assunto. Sempre.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

A democracia e seus impasses.

Norberto Bobbio - Filósofo da política, historiador, com uma profunda obra sobre o pensamento político clássico e moderno e senador vitalício italiano. Bobbio está para a Ciência Política do século XX, assim como Einstein está para a ciência e tecnologia.

A REVISTA CULT (http://revistacult.uol.com.br/novo/ ) desse mês traz um dossiê sobre "A DEMOCRACIA E SEUS IMPASSES". Tem uma boa discussão propondo observar a democracia sob as lentes de Norberto Bobbio. E tem outros artigos e matérias que tentam atualizar a discussão sobre a democracia e a qualidade que ela deve ter.

Aqui reproduzo um pequeno trecho da matéria.

A tradição de pensamento que alguns estudiosos quiseram chamar de "escola de Turim" tem, entre seus temas principais de reflexão, e não apenas de preocupação intelectual, mas também de compromisso civil, o problema da democracia. Trata-se na realidade de um problema complexo, ou de um nó de problemas particularmente intricado, que deve ser enfrentado, sobretudo, com os instrumentos teóricos da análise conceitual.

A teoria analítica da democracia que foi elaborada dentro da escola de Turim, acima de tudo e eminentemente na obra de Norberto Bobbio, é em primeiro lugar uma teoria jurídica, distinta das teorias políticas, como, por exemplo, as de Giovanni Sartori ou Robert A. Dahl, e das teorias economicistas como as de Anthony Downs, e também de Joseph Schumpeter. A teoria de Bobbio é geralmente considerada a versão mais pontual e madura da chamada "concepção processual" da democracia, que, ao longo do século 20, para superar as ambiguidades e os equívocos das concepções "substanciais", concentrou a atenção sobre as "regras do jogo".

Nos últimos tempos voltou-se a refletir sobre este núcleo interno da concepção bobbiana, a teoria das regras constitutivas da democracia, na tentativa de reconstruí-la, reformulá-la e empregá-la como instrumento de diagnóstico para medir o grau de democracia dos regimes políticos contemporâneos.

Leia mais sobre o dossiê A democracia e seus impasses, na edição de julho da revista CULT, já nas bancas.

A democracia para além do Estado de direito?, por Vladimir Safatle

O Brasil é uma semidemocracia?, por Jorge Zaverucha

Democracia no Brasil: um breve histórico, por Gunter Axt

Democracia corrompida, por Slavoj Zizek

Democracia em debate, pensadores discutem os rumos da democracia no Brasil e no mundo.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Justiça para todos os torturadores

Dallari foi de uma precisão cirúrgica neste artigo, em poucas linhas disse tudo o que é efetivamente possível ser dito sobre a necessária punição dos torturadores da ditadura militar. Sem rodeios e nem tergiversações.


Incrível o paradoxo tupiniquim - condena o golpe em Honduras e o desrespeito aos direitos humanos, mas se nega a punir aqueles que a serviço do Estado torturaram, mataram e ocultaram corpos de opositores ao Regime Militar. Interessante, Honduras virará ré no Tribunal da OEA e o Brasil já responde neste mesmo tribunal por se recusar a limpar seu passado autoritário.

Somos mesmo repúblicas bananeiras na América Latina.




Justiça para todos os torturadores
Dalmo Dallari (Jornal do Brasil- 22 de Junho de 2009).


RIO - Há muito tempo a punição de criminosos deixou de ser concebida como um ato de vingança da sociedade, passando a ser reconhecida como exigência da Justiça, que deve ser efetivada pelos meios legais, assegurando-se aos acusados a plenitude do direito de defesa e impondo-se aos culpados a pena justa, de modo que seja preservada sua dignidade humana. Além de configurar um ato de Justiça, a punição dos criminosos tem também um efeito exemplar, influindo para desencorajar a prática de novos crimes. Isso foi ressaltado com grande ênfase por Cesare Beccaria, notável jurista italiano do século 18, em sua obra consagrada Dos delitos e das penas. Opondo-se à excessiva crueldade das penas, mas reconhecendo que estas são necessárias, pondera Beccaria que “um dos maiores freios ao delito não é a crueldade das penas, mas sua infalibilidade”, acrescentando que a certeza da punição, ainda que por meio de uma pena mais branda, causa maior efeito do que a previsão de pena mais severa, se esta for acompanhada da certeza ou da esperança de que não será aplicada.


É necessário e oportuno que tudo isso seja lembrado neste momento em que, tentando criar uma imagem favorável para sua biografia póstuma, um dos mais ativos torturadores a serviço da ditadura no Brasil, o famigerado major Curió, decidiu abrir uma parte de seus arquivos para o jornal O Estado de S. Paulo. Pelo que já foi revelado, praticava-se a tortura com o conhecimento e até mesmo por exigência dos mais altos líderes do governo ditatorial, inclusive ocupantes da Presidência da República. E subordinados que agiam profissionalmente, recebendo dinheiro público em troca da prática dos mais atrozes atos de tortura, que muitas vezes produziram a morte das vítimas, não tinham qualquer inspiração política, como confessa o major Curió. Isso deixa mais do que evidente que a eles não se aplica a Lei de Anistia, pois nem direta nem indiretamente a tortura que praticaram tem alguma conexão com crime político.


É muito importante essa documentação que agora vem a público, acompanhada das confissões do major Curió, pois mostra a realidade da tortura como crime comum praticado contra a humanidade. Em defesa da impunidade dos torturadores tem-se alegado que eles foram anistiados pela Lei da Anistia, a Lei nº 6.683, de 1979, segundo a qual ficaram anistiados os que cometerem crimes políticos ou conexos, ou seja, decorrentes daqueles. Quanto a esse ponto, basta lembrar que em vários tratados e convenções internacionais assinados pelo Brasil desde 1945, como a Carta da ONU de 1945 e as Convenções de Genebra de 1949, assim como na jurisprudência uniforme dos tribunais internacionais, a tortura foi definida como crime contra a humanidade e, por isso, imprescritível. A alegação de que os torturadores foram beneficiados pela Lei de Anistia, porque cometeram crimes políticos, é absolutamente inconsistente, pois os torturadores que atuavam como servidores militares ou civis eram agentes pagos pelo Estado, sendo, portanto, profissionais e não membros de movimentos políticos atuando
nessa condição. Praticavam a tortura porque eram pagos para isso ou porque buscavam alguma vantagem pessoal e requintavam nas violências, chegando até à prática de homicídio, por serem sádicos ou porque buscavam agradar os superiores hierárquicos eliminando os seus opositores. Longe de configurar retaliação, como demagogicamente se tem dito, a punição dos torturadores será, essencialmente, um ato de Justiça, que deve ser praticado para desencorajar novas aventuras degradantes para a história do povo brasileiro.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

A INDÚSTRIA DAS INDENIZAÇÕES

Na Folha de São Paulo de ontem, 28 de junho de 2009, Elio Gaspari publicou este artigo - A Ditadura tornou-se uma indústria. Interessante notar que, no Brasil, quando se resolve fazer justiça utiliza-se dos meios mais injustos possíveis. Vejam no final do artigo, a frase de Millôr Fernandes, este sim, não transformou sua ideologia em investimento. Gaspari foi direito ao ponto. Para ele, "o assalto à bolsa da Viúva conseguiu o que 21 anos de perseguições não conseguiram, avacalhou a velha esquerda". A esquerda brasileira, quando quer, consegue ser igual, ou pior a direita.


SE ALGUÉM QUISESSE produzir um veneno capaz de desmoralizar a esquerda sexagenária brasileira dificilmente chegaria a algo parecido com o Bolsa Ditadura. Aquilo que em 2002 foi uma iniciativa destinada a reparar danos impostos durante 21 anos a cidadãos brasileiros transformou-se numa catedral de voracidade, privilégios e malandragens. O Bolsa Ditadura já custou R$ 2,5 bilhões à contabilidade da Viúva. Estima-se que essa conta chegue a R$ 4 bilhões no ano que vem. Em 1952, o governo alemão pagou o equivalente a R$ 11 bilhões (US$ 5,8 bilhões) ao Estado de Israel pelos crimes cometidos contra os judeus durante o nazismo.


O Bolsa Ditadura gerou uma indústria voraz de atravessadores e advogados que embolsam até 30% do que conseguem para seus clientes. No braço financeiro do pensionato há bancos comprando créditos de anistiados. O repórter Felipe Recondo revelou que Elmo Sampaio, dono da Elmo Consultoria, morderá 10% da indenização que será paga a camponeses sexagenários, arruinados, presos e torturados pela tropa do Exército durante a repressão à Guerrilha do Araguaia. Como diria Lula, são 44 "pessoas comuns" que receberão pensões de R$ 930 mensais e compensações de até R$ 142 mil. Essa turma do andar de baixo conseguiu o benefício muitos anos depois da concessão de indenizações e pensões aos militantes do PC do B envolvidos com a guerrilha.


O doutor Elmo remunera-se intermediando candidatos e advogados. Seu plantel de requerentes passa de 200. Ele integrou a Comissão da Anistia e dela obteve uma pensão de R$ 8.000 mensais, mais uma indenização superior a R$ 1 milhão, por conta de um emprego perdido na Petrobras. No primeiro grupo de milionários das reparações esteve outro petroleiro, que em 2004 chefiava o gabinete do advogado Luiz Eduardo Greenhalgh na Câmara. O Bolsa Ditadura já habilitou mais de 160 milionários.


É possível que o ataque ao erário brasileiro venha a custar mais caro que todos os programas de reparações de todos os povos europeus vitimados pelo comunismo em ditaduras que duraram quase meio século. Na Alemanha, por exemplo, um projeto de 2007 dava algo como R$ 700 mensais a quem passou mais de seis meses na cadeia e tinha renda baixa (repetindo, renda baixa). Na República Tcheca, o benefício dos ex-presos não pode passar de R$ 350 mensais.


No Chile, o governo pagou indenizações de 3 milhões de pesos (R$ 11 mil) e concedeu pensões equivalentes a R$ 500 mensais. Durante 13 anos, entre 1994 e 2007, esse programa custou US$ 1,4 bilhão. No Brasil, em oito anos, o Bolsa Ditadura custará o dobro. O regime de Pinochet matou 2.279 pessoas e violou os direitos humanos de 35 mil. Somando-se os brasileiros cassados, demitidos do serviço público, indiciados ou denunciados à Justiça chega-se a um total de 20 mil pessoas. Já foram concedidas 12 mil Bolsas Ditadura e há uma fila de 7.000 requerentes.


Os camponeses do Araguaia esperaram 35 anos pela compensação. Como Lula não é "uma pessoa comum", ficou preso 31 dias em 1979 e começou a receber sua Bolsa Ditadura oito anos depois. Desde 2003, o companheiro tem salário (R$ 11.239,24), casa, comida, avião e roupa lavada à custa da Viúva. Mesmo assim embolsa mensalmente cerca de R$ 5.000 da Bolsa Ditadura. (Se tivesse deixado o dinheiro no banco, rendendo a Bolsa Copom, seu saldo estaria em torno de R$ 1 milhão.)

O cidadão que em 1968 perdeu a parte inferior da perna num atentado a bomba ao Consulado Americano recebe pelo INSS (por invalidez), R$ 571 mensais. Um terrorista que participou da operação ganhou uma Bolsa Ditadura de R$ 1.627. Um militante do PC do B que sobreviveu à guerrilha e jamais foi preso, conseguiu uma pensão de R$ 2.532. Um jovem camponês que passou três meses encarcerado, teve o pai assassinado pelo Exército e deixou a região com pouco mais que a roupa do corpo, receberá uma pensão de R$ 930.


Nesses, e em muitos outros casos, Millôr Fernandes tem razão: "Quer dizer que aquilo não era ideologia, era investimento?"

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Estulta normalidade.

Sugiro discutirmos a questão ambiental em Campina Grande e sua relação com a forma como os cidadãos lidam com o espaço público - como as pessoas o privatizam em prol de interesses particulares – e a desregulamentação provocada pelo poder público. A poluição sonora e o lixo que se acumula pelas ruas têm haver com os dois fatores acima citados. Muitos acham que defender o meio ambiente é distribuir mudas de plantas e proibir fogueiras juninas, mas não enxergam que parar um carro, em via pública, abrir sua mala e ligar o som em altíssimo volume é tão degradante quando fazer uma fogueira. Abaixo, um artigo onde discuto a problemática.
Estulta normalidade.
“Fala-se de um planeta melhor para nossos filhos,
mas não se falaem filhos melhores para nosso planeta.”
(Autor desconhecido)

Um cientista enjaulou cinco macacos e muitas bananas. Como normal, os símios tentaram pegá-las e foram banhados com jatos de água. Após isso, se um deles insistisse era impedido pelos outros à base de pancadas. Então, esqueceram às bananas. O cientista retirou um deles e pôs outro que correu para as bananas. Os veteranos o impediram com uma surra colossal e ele não mais tentou. Os outros macacos foram (um por vez) trocados e o mesmo ocorria – ao buscarem as bananas, os novatos eram sovados. Ficaram, pois, cinco macacos, que nunca tendo levado jatos de água, batiam nos que tentassem comer bananas. O sábio intuiu que se inquirisse os símios sobre tal atitude ouviria que “as coisas foram sempre assim - isso nunca vai mudar, é normal”.


Obtive variações dessa resposta quando indaguei transeuntes e trabalhadores (de estabelecimentos comerciais) das ruas centrais de Campina Grande sobre os constrangimentos a que somos submetidos devido à poluição sonora, visual, do solo e do ar que tantos males causam e impedem que se trabalhe e estude, se converse ou mesmo transite pelos logradouros da cidade.


Deixando a questão ambiental para os de mérito e/ou de direito, reflitamos sobre aspectos políticos da problemática, considerando que espaço público é o de uso comum e posse coletiva. Analisemos a atuação do poder público nesta área e como cidadãos campinenses lidam com o bem comum, i.e., o modo como aqueles privatizam este ao bel prazer de seus interesses.


Não credito o atino que aceita absurdos como normal. Assim como é comum macacos comerem bananas, deve ser se irritar com o descrito. Ter como normal o que acontece é estulto por desconsiderar os direitos dos que não mais vêem o espaço público como seus - ele foi privatizado pelo vale-tudo da sobrevivência e para que se faça na rua o que só deve ser feito em casa.


Hoje, energúmenos e insensatos de todos os matizes e inhenhos e alarves de todas as áreas acham-se no direito de danificarem nossos ouvidos com o excremento que a indústria musical produz e as malas de carros acrisolam nas ruas. O que legitima um néscio qualquer estacionar em plena “Praça da Bandeira” no meio da manhã, abrir a mala de seu carro e colocar em volume altissonante um desses “forrós de plástico” escatológico? O tosco dirá que o faz porque paga impostos. Na verdade, ele assim age por contar com a impunidade, certeza tivesse da punição pensaria melhor em violentar as pessoas daquela maneira.


Sob o argumento, por certo justo, da “luta pela sobrevivência”, jovens deseducados transitam por onde bem querem com seus execráveis “carrinhos de CD” – uma praga no dia-a-dia dos que fazem coisas úteis. Na rua ou em casa não há sossego. Falar ao telefone, assistir a TV, conversar, dormir, é quase impossível. Mais, se o cidadão reclama é destratado e sofre represálias desses rapazes que pedem indulgência por serem fruto da desigualdade social. A toda hora tem um desses “divulgadores” do material fecal da usina musical mirando suas “cornetas” tonitruantes em direção a quem não quer escutá-las. Se alguém reclama, logo é rechaçada e em tom ameaçador e cônscio da impunidade ouve, como já vi, “venha baixar, venha desligar”.


A poluição sonora é, para a Organização Mundial da Saúde, uma das mais graves agressões ao homem. Para a OMS, o limite tolerável é de 65 dB, acima disso danifica os ouvidos. Para trabalhadores expostos ao barulho os malefícios a saúde vão desde náuseas e cefaléias, passando por distúrbios neuro-vegetativos até efeitos psicológicos. Ainda causa redução da produtividade e aumentam os acidentes e o absenteísmo, i.e., o barulho causa prejuízos à economia da cidade. Por se tratar de problema social difuso, a poluição sonora deve ser combatida pelo poder público, pois o sossego coletivo deve ser mantido, ou retomado no caso de Campina Grande.


A poluição enfeia a cidade. Diariamente se despejam quilos de papel propagandeando de planos de saúde a curandeiros. Postei-me em uma esquina e vi que as pessoas recebem papéis, não os lêem e os levam ao chão. Dias atrás, entre o Shopping Popular Edson Diniz e o Calçadão da Cardoso Vieira, via-se um rastro de papel que encobria as calçadas. Neste dia choveu forte sobre a cidade. Desnecessário dizer para onde foi todo esse papel já que os servidores da limpeza pública estavam em greve. É esta a imagem que os turistas, que visitam Campina Grande no período junino, levem de nós. E esta é a forma como nos vemos – sujos, mal educados, egoístas, poluidores, etc.


Ainda temos outras situações em que o cidadão é achincalhado: há os que usam as calçadas para comercializar produtos (inclusive roubados); e como ruim é transitar pelas ruas, pois os veículos são estacionados nas calçadas; e as lojas que querem atrair clientes pelo barulho e não pelas mercadorias que vendem. Lamenta-se que alguns não percebam que o espaço, por ser público, é de todos e não deles que pensam ter recebido da providência direitos divinos.



E como se responsabiliza o poder público por este estado de coisas? Ele é sim fruto de uma deseducação sem fim das pessoas, mas dá-se, também, pela desregulamentação do modo de se usar os espaços públicos e pela forma como os poderes lidam com o meio ambiente. Existe em nossa cidade a idéia corrente que cuidar dele é distribuir mudas de plantas e proibir fogueiras no mês junino. O mito encobre as variadas formas de se degradar o meio ambiente. Existe conivência do poder público para com os descalabros aqui citados. Gestores e parlamentares não tomam medidas por (1) recearem perder votos dos que se sintam prejudicados e (2) por, quando candidatos, precisarem também poluir o meio ambiente com suas propagandas eleitorais. Quem esqueceu o barulho intenso da eleição de 2008? Candidatos falavam, em seus guias eleitorais, em defender o meio ambiente e iam às ruas poluí-lo com seus carros de som, passeatas, carreatas, panfletos, etc.


E que não se diga que não existem leis para combater tudo isso. Não precisa reinventar a roda, basta apoiar-se na Lei Orgânica do Município de Campina Grande. Nela é dito que a prerrogativa de proteger o meio ambiente e assegurar uma saudável qualidade de vida é do município. Cabe a administração munícipe estabelecer critérios, normas e padrões de proteção ambiental e fiscalizar instalações, equipamentos e atividades que comportem risco. Nesta Lei, um parágrafo possibilita aos atuais gestores e parlamentares municipais demonstrarem, na prática, o comprometimento com a nossa qualidade de vida. Basta definirem, em lei complementar, a política e o regulamento que coibirá a poluição. Urge que se aprove o Código de Defesa do Meio Ambiente, que dará poderes efetivos à Coordenação de Meio Ambiente para não só promover campanhas educativas como para punir os deliquentes denegridores do meio ambiente.


Para fazer valer direitos e cuidar do meio ambiente não faltam leis, falta vontade política. Os causadores de dolo são os que poluem o meio ambiente, não os que reclamam direitos.

Junho/2009.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

As forças armadas devem combater a criminalidade?

Misturando conceitos e confundindo premissas, o Major do Exército Alessandro Visacro defende, na entrevista abaixo, idéias estaparfúdias como a que os traficantes do Rio de Janeiro e São Paulo utilizam os mesmos métodos dos terroristas internacionai. E, usando uma lógica mais do que formal, conclui que se as Forças Armadas combatem o terrorismo e os traficantes usam métodos do terror, então o Exército deve combater o tráfico.
Sem contar que, ele inverte a ordem. O que seria função das Forças Armadas apenas em ditaduras ou regimes autoritários, ou ainda, em situações excepcionais, para ele deve ser algo "normal" em regimes democráticos. É a velha mentalidade pretoriana que persiste dentro, e fora, das instituições coercitivas.
Na verdade, temos aqui mais do mesmo. As mesmas idéias do tempo da ditadura, onde o Exército tem que atuar nas questões de segurança pública. Vejamos:


"As forças armadas devem combater a criminalidade" - Alessandro Visacro.
Pesquisador de guerras irregulares, major do Exército diz que narcotráfico é questão federal e não pode ser combatido apenas pelas polícias. Por Francisco Alves Filho

Mineiro radicado no Rio de Janeiro, durante cinco anos, o major do Exército Alessandro Visacro, 39 anos, se dedicou a estudar o tipo de combate praticado por grupos clandestinos em todo o mundo. A conclusão de sua pesquisa: os narcotraficantes que atuam em cidades como Rio ou São Paulo têm formas de ação similares às das organizações terroristas internacionais. Logo, se o terror é combatido pelas Forças Armadas, o crime organizado também deve receber o mesmo tratamento. Nesta entrevista, o militar defende publicamente esta posição. "As Forças Armadas têm um repertório de capacidades muito grande, que pode ser utilizado contra grupos armados, sejam eles do interior da selva amazônica, da área fronteiriça ou de uma área urbana ocupada por alguma facção criminosa", diz. Segundo ele, a solução para o problema da Segurança Pública envolve medidas que também dependem do governo federal. "É imprescindível reduzir a oferta de cocaína dos três principais produtores mundiais: Colômbia, Peru e Bolívia. Essa é uma tarefa do Ministério das Relações Exteriores." Suas ideias estão no livro "Guerra Irregular - Terrorismo, Guerrilha e Movimentos de Resistência ao Longo da História" (Editora Contexto). Este tipo de guerra é marcado por recursos como sequestros, sabotagens e ações terroristas.

ISTO É - A polícia cumpre hoje um papel que seria das Forças Armadas?

Alessandro Visacro - Sim. Se olharmos o Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), ele é mais uma tropa de combate que uma força policial. No mundo não há algo similar. A Swat americana atua no resgate de um refém, em um momento de crise, algo pontual. O Bope é uma força de incursão e tem técnicas de uma tropa de infantaria voltada para o combate urbano. A polícia hoje anda de forma ostensiva com um fuzil 7.62. Isso não é arma policial. Mas não pode ser de outra forma porque esse homem poderia ser alvo de disparos. O chamado caveirão (blindado da Polícia Militar) é um tipo de veículo que antes era de uso exclusivo das Forças Armadas e hoje é usado no combate rotineiro ao tráfico em morros cariocas.

ISTOÉ - Quais os resultados disso?

Visacro - Ao olharmos para exemplos históricos em outras partes do mundo, vemos que, quando a polícia é obrigada a fazer o trabalho além de suas atribuições, costuma dar ênfase apenas às ações repressivas, em detrimento de outros pilares importantes como legitimidade do poder central e apoio da população. Essas operações visam apenas a esses fins e são contraproducentes. Mas atribuir à polícia esses equívocos seria uma injustiça. Isso acontece porque queremos reduzir um problema amplo como o da violência urbana à visão simplista da Segurança Pública.

ISTOÉ - As Forças Armadas, então, devem assumir o papel de combate à criminalidade? Visacro - É necessário, primeiro, que o Estado tenha uma política efetiva que englobe todos os campos do poder nacional. Um esforço da Nação em que haveria responsabilidade para todos, inclusive para as Forças Armadas. Mas com o cuidado de não militarizar o tema. Não podemos achar que ações repressivas vão trazer resultados a curto prazo. O emprego das tropas militares em qualquer forma de conflito obedece a preceitos muito claros. O uso fora desses critérios significa vulgarizar esse recurso, algo apenas empírico como instrumento de política paliativa. Isso não pode. Existe uma tendência natural da opinião pública de clamar pelo emprego das tropas. As Forças Armadas devem combater a criminalidade, mas uma solução definitiva não passa só por essa questão.

ISTOÉ - Como as tropas podem ajudar?

Visacro - De várias formas. As Forças Armadas têm um repertório de capacidades muito grande, que pode ser utilizado contra grupos armados, sejam eles do interior da selva amazônica, da área fronteiriça ou de uma área urbana ocupada por alguma facção criminosa.

ISTOÉ - Os críticos dizem que as Forças Armadas são treinadas para aniquilar o inimigo e não para atuar em locais povoados por inocentes.

Visacro - A ideia de que as tropas são preparadas apenas para usar tanques de guerra e bombardeio é um conceito da época da Revolução Industrial. Os militares de Operações Especiais são treinados tanto para o chamado tiro seletivo ou tiro de alta precisão quanto para os assuntos civis, que demandam atividades voltadas para a melhoria das condições de vida da população carente, como construir praças e pontes.

ISTOÉ - Quais são os parâmetros para o uso dos militares contra o crime?

Visacro - O conceito básico é que as Forças Armadas devem ser empregadas como instrumento efetivo da política de Estado. Algo claro, exequível, com objetivos bem definidos. Deve haver amadurecimento da sociedade para que o seu inconformismo não seja efêmero. Qualquer política de Estado eficiente nessa área vai ser impopular, a longo prazo, e onerosa. O Estado só vai se lançar numa empreitada dessas quando souber que o respaldo popular vai resistir a essas condições. Aí sim se pode imaginar uma forma mais clara de colaboração das tropas. Esse amadurecimento da opinião pública demanda tempo e esse tempo tem cobrado caro de nós.

ISTOÉ - Quais as consequências da ação distorcida da polícia?

Visacro - Os índices da violência urbana no Brasil são impressionantes. Especialmente os números de homicídios relacionados à repressão policial, os chamados autos de resistência. A polícia de São Paulo tem conseguido reduzir esse índice, mas a do Rio não. Hoje os policiais do Rio matam seis vezes mais que seus colegas paulistas. Estou longe de condenar o policial que está na posição de matar ou morrer. Mas um dos motivos é a corporação tentar cumprir uma função que não é dela. Somente numa incursão na Favela da Coreia, na Vila Cruzeiro, houve 20 mortos e sete feridos. Ação policial com esse número de vítimas é rara no mundo.

ISTOÉ - O sr. acredita que a sociedade se acostumou a isso?

Visacro - A repressão que o Estado promove hoje é paradoxalmente mais violenta que a dos governos militares contra os movimentos de esquerda, quando houve abusos condenáveis. Se formos olhar em termos numéricos, pelos relatórios da Anistia Internacional, os números são mais expressivos. A indignação com a tortura nas décadas de 70 e 80 deveria se repetir hoje. Estou falando da nossa tolerância e do nosso descaso com a vida humana. Se nós repudiamos e condenamos a repressão que aconteceu antes, por que aceitamos tranquilamente formas de repressão que são maiores em pleno Estado democrático?

ISTOÉ - Criminosos, como os traficantes, praticam guerra irregular?

Visacro - As facções armadas ligadas ao crime organizado do Rio se inserem perfeitamente no contexto da guerra irregular, mas lhes falta organização. Mais importante que a definição acadêmica é a constatação de que ultrapassamos o limite do tolerável. É preciso entender que temos novas ameaças à sociedade, fragmentadas e não estatais.

ISTOÉ - A situação da criminalidade no Rio é a mais crítica do País?

Visacro - Não. Mas tem características específicas que lhe dão maior visibilidade. A situação de São Paulo é tão crítica quanto a do Rio. Os episódios que o PCC protagonizou são emblemáticos. Em 2001, a um só comando 30 mil presos se amotinaram em 29 casas de detenção ao mesmo tempo. Isso demonstra organização e capilaridade. Dados de 2007 apontavam que os filiados ao PCC giravam em torno de 15 mil. Se isso estiver correto, coloca o PCC num patamar similar ao das Farc.

ISTOÉ - Quando esse tipo de combate tornou-se mais comum? Visacro - A partir da Segunda Guerra Mundial. Hoje, os exércitos regulares estão desenvolvendo capacidades para atuar com forças irregulares. Criou-se o conceito de Forças Especiais, restritas e treinadas para atender às exigências do combate irregular.

ISTOÉ - Como as leis podem controlar esse tipo de combate?

Visacro - Existe um problema de legitimidade muito delicado. Quando um exército começa a entrar nesse campo nebuloso, pode acarretar problemas não só de ordem legal, mas também ética e moral. Corre o risco de comprometer a legitimidade do poder central para quem ele realiza essa operação. Existe um limite de atuação que é aceitável e isso vai depender das leis de cada país.

ISTOÉ - É possível criar um conjunto de leis específico para esse tipo de ação?

Visacro - Vamos ficar sempre na corda bamba. Até porque, as organizações clandestinas de luta armada vão sempre procurar o campo da indefinição jurídica, fora do espectro legal.

ISTOÉ - Por que a violência transcendeu o âmbito da Segurança Pública?

Visacro - Quando reduzimos o problema ao mero escopo da Segurança Pública, estamos postergando sua solução. Esse tema é da esfera estadual. Mas veja: é imprescindível reduzir a oferta de cocaína dos três principais produtores mundiais, Colômbia, Peru e Bolívia. Essa não é tarefa dos Estados, e sim do Ministério das Relações Exteriores. Estabelecer acordos binacionais para combater o tráfico de armas, por exemplo. A questão envolve assuntos acima da competência dos órgãos estaduais, especialmente dos da Segurança Pública. Estamos exigindo demais da nossa polícia, distorcendo suas atribuições constitucionais.